sexta-feira, 3 de outubro de 2014


RIO GIRAHULO
 
     Decorria o ano de 1839 e à baia de Mossâmedes aportava a corveta Isabel Maria, capitaneada por Pedro Alexandrino da Cunha em execução de instruções do Governador Geral do Reino de Angola. Nesta baia deveria encontrar-se com o tenente João Francisco Garcia que de Benguela partira por terra, com passagem por Quilengues, Huila e Jau. Este itinerário fora assim delineado, para que o Tenente pudesse sensibilizar os sobas da Huila e Jau, que subjugavam os povos das praias, da chegada dos brancos aquelas paragens.
     Nessa altura a baia de Mossamedes, tradicionalmente  conhecida por Mussungo Bitoto, tinha um sobado governado por Muena Chipola, cuja povoação ficava a uma milha da praia, na margem direita do Rio Bero. A norte desta baia, desaguava um outro rio, que inicialmente ainda se supôs que fosse um braço do Bero,  denominado Quenina, em cujas margens ficava o sobado de Loquengo.
 
     Chegado à baia uns dias depois da corveta, o Tenente Garcia trazia em sua companhia o Soba Loquengo, que havia liberto do Soba do Jau, onde estava prisioneiro, acusado de feitiçarias. A divida de gratidão do Soba Loquengo ao Tenente Garcia era tanta, que logo quis prestar vassalagem ao Rei de Portugal, para que o pudesse defender dos povos do planalto que frequentemente desciam a estas paragens para pilhar o seu gado.
     Os portugueses movidos pelo mesmo interesse, convidaram o Soba Loquengo a bordo da corveta Isabel Maria, que não sem bastante repugnância, acedeu. Ali foi reconhecido e autorizado em parada geral da guarnição, tendo-lhe sido dado o novo nome de Girahulo, oferecida uma capa de pano vermelha, uma cadeira, um casal de leitões, um galo e uma galinha para criação, pois nada tinha.
     Foi a partir desta data que a denominação de Loquengo e Quenina começaram a dar lugar ao nome Girahulo até caíram completamente em desuso.
 
 
Aurélio Baptista 03-10-2014
 


terça-feira, 16 de setembro de 2014



Soba Luhuna

Logo que os portugueses de Angola tomaram contacto com os povos residentes para sul do Kuanza, tiveram conhecimento da existência do Humbe Inene (Humbe Grande), imenso território chefiado por um potentado importante, que subjugou, por muito tempo, povos vizinhos e mesmo afastados, como o Bié.
Em virtude desse conhecimento e atraídos por uma alarmante suposição de grandes riquezas, a cobiça levou de imediato os colonos, após a fundação de Benguela, a procurar o Humbe Grande e do Humbe Pequeno, conforme se escrevia em 1770: Lá onde “a entrada dos brancos até agora se não tem podido conseguir, e nem se conseguirá sem grande poder; tanto porque estes negros são valorosos, em grande número, e de muito ânimo, como porque é contra as suas leis, o entrarem-lhe os brancos dentro das suas terras (e ainda mesmo negros vestidos ou calçados). Eles pois dão tanto a conhecer o seu valor e desapego pela vida, que longe de fugirem nas suas guerras que perdem, esperam a pé firme pela morte, juntos com o seu soba. Este recebe presentes dos brancos, e só trata com eles por via de pombeiros pretos. Os seus filhos entram aqui (Benguela) todos os dias a vender escravos, e marfim. Eles são os que mais familiarmente se tratam com os brancos; os escravos mais fiéis, e os que mais resistem aos embarques para a América”.
Como se pode ver este sempre foi um território cobiçado pelos portugueses e cujo povo resistia heroicamente a essa penetração e como tal eram frequentes os conflitos.
Assim em 1886 depois de mais um conflito, os portugueses depõem o soba Tchaungo, que conseguiu fugir e substituem-no pelo seu irmão Tchioia.
Essa mudança não trás acalmia à região, porque a força militar portuguesa era insuficiente para a impor, e à frente dos revoltosos encontravam-se, o soba insubmisso Tchaungo (preso em 1888), o soba Mané Ntungo (preso também depois de muitos trabalhos em 1889 no Quiteve) e o célebre régulo Luhuna, que o chefe do concelho pretendera também capturar, em duas tentativas extremas, feitas no mesmo ano de 1889, sem alcançar, contudo, o seu objectivo. Esse facto aumentou-lhe o prestígio entre o seu povo, pelo que o numero de seguidores foi aumentando gradualmente, até que em 1891 Luhuna declara guerra ao soba avassalado Tchioia, que residia ao lado da fortaleza dos portugueses, procurando substitui-lo.
No relatório do chefe do concelho do Humbe, capitão Luna de Carvalho para o governador de Mossâmedes, consta: “Convicto o Luhuna da impossibilidade de poder atacá-lo (ao Tchioia), aproveitou-se da antipatia que o povo vota ao actual soba, e, atraindo aquele com promessas, não tardaram as terras de Muculo, Mahengue e circunvizinhanças a aderirem à sua causa, exacerbadas como estavam contra o seu soba, por não querer ou não saber dar chuvas!
O Luhuna, de guerrilheiro que era, depôs as armas e arvorou-se em cirurgião das chuvas, prometendo que breve faria chover, o que de resto sucedeu por feliz acaso; com as primeiras chuvas coincidiu a enchente do Rio Caculuvar, pelo que ele anelava para ver cortadas as comunicações do soba com a fortaleza, e dois dias depois da enchente, fui avisado do que o rebelde se dispunha a atacar a embala.”
Nesse sentido, o dito Capitão enviou 12 soldados para protegerem o soba e dias depois quando Luhuna atacou a embala, foi repelido pelos soldados que ali não contava encontrar. Apesar de derrotado, com o seu arrojo, continuou a granjear mais prestígio e adeptos entre os seus.  
Entretanto os portugueses tentam por via diplomática atrair Luhuna a um encontro com o intuito de o capturarem, o que não sucedeu porque entretanto Luhuna não desistindo da sua intenção de derrubar o soba Tchioia, ardilou uma emboscada ao mesmo. O soba Tchioia, exaltado com a vitória sobre Luhuna, reclamava vitória. Luhuna fez-lhe constar que se encontrava isolado e desacompanhado. Tchioia, convence os soldados que lhe davam protecção, prometendo-lhes que lhes entregaria todo o gado que fosse apreendido na operação, se o acompanhassem nessa sua intenção de aniquilar Luhuna e assim partem para a batalha. Chegados ao local onde deveriam encontrar Luhuna, viram-se cercados pelas hostes do guerrilheiro e foi a hecatombe. Os muhumbes que acompanhavam Tchioia passaram-se para lo lado de Luhuna e os soldados que não fugiram foram ali liquidados. O soba Tchioia logrou fugir e foi procurar refúgio na fortaleza dos portugueses.
Luhuna ainda se sentiu mais moralizado com a vitória e tratou de se impor como soba do Humbe. A submissão dos muhumbes não foi tão fácil como previsto tendo que recorrer mesmo à força, com o apoio de Muene Mufito e Muculo e assim o povo da margem direita do Caculuvar se curvou perante a sua vontade, reconhecendo-o como legitimo soba. Com metade da terra a seu lado e coadjuvado por mucuamatis e mu-dongoenas que se lhe aliaram, fez algumas incursões sobre o povo da margem esquerda que acabou também por o reconhecer.
Já senhor do Humbe, faltava-lhe ainda desfazer-se do soba Tchioia que continuava refugiado na fortaleza portuguesa. Reunindo um pequeno exército composto por elementos do Humbe, Dongoena, Hinga, Chatona, Aiquero e Qualunde, atacou a fortaleza, que foi resistindo com muitas dificuldades às suas investidas. Não fora terem entretanto chegado reforços de peso para os portugueses, Luhuna teria logrado os seus intentos. Os reforços que chegaram em resposta ao pedido de auxílio enviado para Mossâmedes, era composto por 20 boers, 30 bushmen, 44 bergdâmaras, 500 muchimbas, 20 bastards, além de caçadores e cavalos do esquadrão irregular, uma peça Krup, uma metralhadora e o material de guerra suficiente para as operações. Esta coluna composta na sua maioria por gente afecta aos Boers e comandada por eles, vinham com o propósito de pilharem o gado aos muhumbes, fazendo a política de pilhagem e terra queimada.
A primeira razia deu-se no Mofito, tendo o soba Muene Mofito fugido para as terras do sogro Muene Chatire, cuja quimpaca era considerada inexpugnável. Atacada com artilharia e cavalaria, a quimpaca do régulo foi tomada e incendiada, tendo os mesmos fugido para o Muenhe, perseguidos pela tropa portuguesa e onde se deu nova e renhida batalha que redundou numa razia aos Humbes. Perante isto Luhuna refugiou-se no Dongoena. Sabendo disso os portugueses para lá se dirigem e marchando pela Tchipola  dão-se confrontos sucessivos em Chieti, Econgo, Hinga e Oire. Entretanto Luhuna reúne o que resta do seu exército numa floresta na Tunda, onde se travou mais uma difícil batalha onde perderam a vida mais de cem guerreiros de Luhuna e foram apreendidos 3000 bois, 1000 carneiros e muitas cabras. Esta derrota permitiu aos portugueses a imediata vassalagem do secúlo Capunda, o mais poderoso da Hinga, que prometeu prender Luhuna, se voltasse a refugiar-se no seu território.
As operações para a captura de Luhuna continuam e são raziadas as terras de Chipelongo, Cabole, Co-Kubango, Chetechete, Hiua, Pucolo e Cacolongombe, dos quais resultaram a morte de inúmeros apoiantes de Luhuna e a pilhagem de muito gado. Enquanto decorriam estas operações iam sendo avassalados vários fidalgos respeitáveis.
Luhuna, batido em toda a parte, já quase sem apoios, refugia-se na embala do soba cuamato Aiquer, na outra margem do rio Cunene. Embora sem esperança de o prender, porque ele fugia a cavalo após cada derrota, resolvem os portugueses atacar a referida libata, com o auxilio do soba do Cuanhama, que se traduziu em 3500 homens e 6 cavaleiros e da cooperação dos secúlos de Chapelongo e Chitire-Cafunduca.
O combate dá-se em Dombeafungue e foi duro e prolongado. Iniciou-se às 16 horas e terminou no dia seguinte à 1 da manhã. Os apoiantes de Luhuna, que mais uma vez logrou escapar para o Lueque, sofreram pesada derrota tendo deixado no terreno mais de 200 mortos.
Atenta a impossibilidade de prender Luhuna e porque talvez já se encontrassem satisfeitos com o resultado das pilhagens praticadas, retiram os portugueses e seus aliados em Agosto de 1891 para a Huila.
Note-se que todos estes acontecimentos se desenrolaram entre Março e Agosto de 1891.
Luhuna, só terá sido capturado em 1905 pelo sertanejo José António Lopes. Levado para a sede do distrito onde lhe foram tiradas as fotos aqui postadas, foi depois deportado (desterrado) para Cabo Verde, onde terá porventura falecido em data incerta.
Na minha modesta opinião, não era demais Angola resgatar os restos mortais deste e doutros angolano que jazem por esse mundo fora, para que possam finalmente descansar em paz.      

  Setúbal, 14 de Setembro de 2014.

terça-feira, 19 de agosto de 2014


Ovakwambundo - O povo do nevoeiro

                Era eu ainda candengue e já ouvia os mais velhos falarem acerca de umas construções circulares, talvez fundos de cabanas, encontradas no Morro Vermelho (paralelo 17º), que se desconheciam as origens, etc.. e tal.

                Há dias, quando pesquisava acerca da origem do nome “Baía dos Tigres” (texto atrás publicado) encontrei as seguintes referências:

                No depoimento do explorador inglês Willian Messum, que em Janeiro de 1855 esteve na Baía dos Tigres, refere o seguinte:

                “Partindo da entrada da bahia, caminhámos umas dez milhas ESSE. sobre imensas cabeças de areia e ravinas curiosamente formadas. Achamos então uma aldeia de naturaes composta de umas cincoenta famílias. Eram os mais bellos negros que se pode ver; quase nenhum abaixo dos seis pés, e um bello rosto aberto. As mulheres eram particularmente bellas como negras, notavelmente cheias e nutridas. Não vimos gado grosso; nem miúdo. Parece viverem da caça, pois se viam restos de numerosas antílopes e zebras, além de montes de conchas e espinhas de peixe. Em quanto estivemos com eles, um negro de uma grandeza atlântica trouxe uma gazela. As armas de que parecem usar, são um forte arco, maior ainda do que eles: as settas são lindamente feitas, com barras de ferro, as azagaias similhantes ás dos Cafres, mas mais compridas. A principal mulher trazia no cabelo alguns botões; em roda do pescoço moedas portuguezas (moedas de cinco tostões) e algumas contas. Todos elles tinham manilhas de cobre em roda dos braços e tornozelos, mui limpas e tinha de tal sorte a apparencia e peso do oiro, que eu cuidei que o eram, até as experimentar com agua forte. Fiquei maravilhado de ver o logar d’onde tiram agua, que era de dura rocha de granito, e ainda que a quantidade era pequena, era sumamente pura. Receberam-nos com temor; e observaram-nos por algum tempo , tendo-se sumido as mulheres e creanças, e os homens continuamente passavam os dedos pelo pescoço, como quem queria saber se tínhamos ido para os matar. Eram particularmente atemorizados das armas de fogo, e por caso nenhum as queriam tocar. Fomos obrigados a pôr as armas debaixo de um penedo, e então as mulheres e creanças foram apparecendo. As creanças mais pequenas nunca nos deixaram toca-los; mas os maiores logo ganharam confiança, e começaram a examinar a nossa pelle com muita curiosidade. Não sei até que ponto se teriam familiarizado comnosco, se nós lh’o tivéssemos permitido”

                No livro Exploração Geográphica e Mineralogica no Districto de Mossamedes em 1894-1895 de J. Pereira do Nascimento, na parte em que explora as dunas a norte da baia dos Tigres:

                “Sobre o fundo chato e escuro d’estas pequenas bacias veem-se montículos de conchas e pelas dunas abunda o ferro em pó.

                Segundo dizem os ba-koroca esta zona era, ha annos, habitada por uma tribu de gentios, os ba-kuando, que se alimentavam de mariscos, cujos despojos formam os montículos brancos espalhados pelos valles. Estes indígenas viviam dispersos por estes oásis, sem habitações, nem plantações, á semelhança dos ba-kuisso que vivem em grutas naturaes praticadas nas rochas pelo litoral ao norte de Mossamedes. Ha annos sobreveio uma epidemia de variola que os desimou, retirando os restantes, uns para Porto Alexandre, onde se empregam no serviço da pesca e outros emigraram para o sul do Koroka”.  

                Também no livro de Alexandre Magno de Castilho “Descripção e Roteiro da Costa Occidental de Africa: Desde o Cabo Espartel até O das Agulhas – Vol. 2”:

                 " Por segunda vez descemos a terra ao romper da manhã de 23 de dezembro de 1854, e ao cabo de andarmos 4 ou 5 leguas encontrámos um preto, pescando na borda do mar e junto a umas pedras. Interrogado pelo nosso interprete soubemos que pertencia a uma tribo errante, para a qual estava pescando e que acampára nas proximidades. Procurámo-la e vimos que se compunha de 4 homens, 3 mulheres, 6 crianças e 19 cães, tudo accommodado em 2 barracas e um cercado feito de costelas e outros ossos de baleia; sustentavam-se de peixe, secco ao sol; bebiam agua tão péssima que, apesar de ardendo de sede, não podemos entrar com ella, e vestem-se apenas com trapos que lhes tapam as verilhas. Caso raro, rejeitaram a aguardente que se lhes offereceu, e sob pretexto de ser muito fria não aceitaram da nossa agua doce; comeram porém com avidez farinha de pau, e estimaram muito o tabaco. Por elles soubemos que ao cabo de 3 ou 4 dias de marcha para S. encontraríamos o rio Cunena”. 

                E ainda no Esmeraldo Situ Orbis (cap. 3º, liv.III) de Duarte Pacheco Pereira, acerca da viagem de Diogo Cão em Janeiro de 1484:

                “…é achada uma enseada que terá duas léguas em largura na boca, que se chama Manga-das-Areias (Baia dos Tigres), e esta se estende por dentro pela terra cinco ou seis léguas, e na mesma bôca e dali por dentro tem 12 e 15 braças de fundo, e esta terra é deserta e nenhum arvoredo tem, porque tudo é areia; e dentro nesta manga há muita pescaria e, em certos tempos do ano, vêm aqui do sertão alguns pretos a pescar os quais fazem casas com costelas de baleias cobertas de sebes do mar, em cima lançam areia e ali passam sua triste vida”.

                Já havia lido, na obra de Cardonega, História Geral das Guerras Angolanas, que em 1681, contava o seguinte:

                “ Succedeo no governo de André Vidal de Negreiros hir hum homem pratico a descubrir esta costa por nome Joseph da Roza, por ver se achava alguma noticia de boca de rio que entrasse para os Cuama, e chegando costa a costa, a dezouto graos, por alem de Cabo Negro, não achando noticia, do que buscava, (resolveu?) trazer gentio daquella paragem, que se não entendia nada do que fallava; e a falla como de estralo, gente como selvagem, que bem o demonstravam assim em comerem a carne, e peixe, e milho cru, e por acenos, só se entendia delles alguma couza, os quaes se mandarão pôr outra vez em suas terras, á custa de quem os trouxe, sem os haver comprado, nem resgatado, o que bem se demonstrava em tanta distancia de sertão, haver mais províncias de gentios de differentes lingoas e costumes, e não ser só a de o Hila.

                José da Rosa fez esta viagem em 1665, conforme se pode comprovar pelas inscrições do morro da Torre do Tombo.

                Também já havia lido na obra de Alfredo de Albuquerque Felner , Angola - Apontamentos sobre a colonização dos Planaltos e Litoral Sul de Angola, o documento de João Pilarte da Silva, na sua Rellação da viagem q’fez ao cabo Negro por terra no ano de 1770 a procurar naufragados, conta o seguinte:

                “Caminhamos a descortinar as prayas das ditas q’ gastamos 5 dias de marcha violenta, sem se achar povoado, e nem o há. Em trez dias não achamos agoa, por cuja razão me morrerão varias pessoas; como também á falta de mantimentos: No fim dos 5 dias avistamos as prayas, e o Cabo Negro.

                São todas as terras dezertas de montes, e pedras, despenhadeiros athe chegar ás Prayas q’ se avistão dos últimos montes, e se descobre huma plainice muito grnde, e dilatada, de terra tão seca, q’ em toda ella se não vê huma só arvore, nem folha verde. Terá a largura do fim dos montes the as prayas 3, Legoas, e de comprimento, he quanto se pode alcançar com a vista. Da parte de Cabo negro, tem muitos montes de pedras, e furnas feitas pela natureza, q’ parecem armazéns, e obras arteficiaes, de q’ se serve aquelle gentio para guardarem as fazendas; e trastes dos navios q’ ali dão a Costa; cuja experiencia fizemos por ali acharmos fragmentos de navio, retalhos de fazendas, e dois caldeiroins de cobre q’ fizemos conduzir: algumas ferragens de navios e o vão de hum calis de pratta.

                Esta anciada de Mar he muito sossegada, parece Rio morto, e se não achou jangada, nem couza q’ se presumisse o poder servir para Pescarias, nem páo, ou taboa de qualidade alguma, e por isso não podemos sondar o fundo daquela anciada. Para a parte Sul pegado a huns montes achamos hum Rio largo e seco como o Maribombo, q’ vem por entre os montes de longe das terras de Auyla, e vay desaguar ao Mar muito para o Sul, e ali se fazem cassimbas, e se tira agoa dosse, e boa. De hum lado deste Rio achamos huma Lagôa muito larga, e bastantemente funda, q’ terá de comprimento meya Legoa, e de largura, 50 Braças, e outras pequenas ao pé. A sua agoa he salobra. Nas margens deste Rio tem mateveiras, q’ são as únicas arvores q’ ali vimos; a palha he massangala-lá bravo, e na margem da Lagôa tem muitos páos de Bimbas, e caniços bravos, como os q’ se achão no Maribombo, e alguns espinheiros.

                Nesta Lagôa há muita taynha, e outras qualidades de peixes em q’ os Negros fazem suas pescarias, mas não achamos jangadas, nem outra couza em q’ se podesse presumir elles hirião pescar. Nas margens do Rio, e Lagôa he q’ achamos humas Barraquinhas de negros as três, e quatro em diversas partes, e so em huma parage achamos 15 juntas q’ por todas fazião 50 muito pequenas, e baixas cubertas dos ramos dos páos das Bimbas. As paredes são dos ramos ditos e favricão humas esteiras de massangala-lá com q’ reparão também as cazas, e algumas cobrem com ellas, e as mudão quando querem de hum para outro lugar.

                Este gentio he muito bravo, e logo q’ nos virão, sendo elles hum numero tão diminuto, q’ não chegarião a 50 nos investirão com grande violência, sem darem atenção ao q’ se dizia, de forma q’ foi preciso defender deles, e apoder de tiros se retirarão: Uzão de arco, e flechas, porem são mais pequenas q’ as dos mais gentios: Os Negros grandes trazem hum pequeno couro de Boy a diante, cobrindo as suas partes, e o mais tudo Nú: As mulheres andão nuas, e so algumas trazem huma tira do tal couro como cinta na Barriga. Não falão senão por estalos, e se entendem por acenos, por cuja cauza não havendo quem os entendesse, nada podemos averiguar de mais circunstancia, nem donde seria a Povoação mayor, e sempre infirimos q’ mais para o Norte, ou Sul estaria, o q’ não podemos descobrir em 5 dias q’ ahi nos dilatamos.

                Chagamos ás Prayas, e anciada, q’ se diz ser de cabo Negro, e a sua vista q’ assim certificou o Piloto Jozé dos Santos, achamos o Mar morto, como hum Rio sem violência alguma, e as prayas dezertas, e daqui se ve huma grande restinga q’ bota ao mar, e he de areya.

                Todos os montes q’ há, são mineraes de salitre, e he tanto q’ nunca se poderá extinguir, e a hum lado desta marge achamos duas Salinas obra da natureza; huma de sal vermelho em sima e verde por baixo, a outra de Sal muito branco como cristal. Ao pé desta Lagôa achamos vistigios de terem ali falescido alguns brancos, por acharmos muitas caveiras q’ não podião ser de gentio por q’ estes enterrão os seus corpos nos montes entre pedras, e consideramos serem estrangeiros pelos retalhos de fazendas q’ inda achamos em buracos daquelas furnas diferentes das nossas.

                Este gentio segundo podemos coligir se sustentão de peixe, e alguma carne das suas caçadas: comem também os olhos dos caniços, e algum leite, porq’ achamos algumas vacas, muito pequenas, e diferentes das nossas, porq’ os rabos arrastão no chão, e não podemos conduzir nenhúa por serem muito magras, e não aturarem a marcha.

                Trouxemos duas Negras daquele gentio, q’ nos derão algumas noticias, e falescerão de Bexigas na viagem, e o mesmo sucedeo a muitos dos nossos Negros. Os daquele gentio são muito perros, e apenas se apanha algum logo toma o folgo, e morre.

                Pelas grandes fomes, e frios q’ ali experimentamos, e nos hir morrendo a gente, e Boys Cavalos, não nos podemos dilatar mais de 5 dias, e nada podemos mais descobrir, e na retirada nos sahirão ao encontro como Leons, de q’ nos custou livrar.

                Parece impossível de habitar semelhante terra por ser muito agreste, e falta de mantimento, e agos, e suposto tenha ao pé da praya hum monte alto em q’ se pode erigir povoação, não tem agoa se não da li a 3 Legoas”.  

                Todos estes relatos aguçaram a minha curiosidade pois logo percebi que poderia haver uma ligação entre as tais construções e este povo que se faz referência. Assim continuei a minha pesquisa e o que encontrei foi deveras surpreendente.

                No livro “De Angola à Contracosta” de Capelo e Ivens, na parte da exploração do Rio Curoca, encontrei o seguinte:

                “Apenas alguns baximbas nómadas por ai às vezes se aventuram, como depreendemos de um tronco queimado que encontrámos e por uns círculos de pedras, talvez sepulturas, dispostas à feição dos cromlechs, nas proximidades da garganta de que falámos; onde, sem embargo de muitas escavações, não encontrámos despojos, e isto nos levou a crer que, se para tal fim ali foram colocadas, era circundado o cadáver que as aves e feras devoraram, se não ao lado que o depunham, segundo o nascente ou poente, como já no Senegal se encontrou”.

                Os fundos de cabanas que aparecem ao sul da Baia dos Tigres e também na região da Espinheira, foram estudados em 1967 pelo Dr. Alberto Machado da Cruz, então conservador do Museu da Huíla, na cidade do Lubango.

                Do seu trabalho consta o seguinte:
                “Em 1959 foi-nos possível deslocar até essas paragens da ponta Sudoeste de Angola, e tivemos oportunidade de ver muitas dessas construções circulares, no Morro Vermelho, que fica no paralelo 17, sobranceiro à costa marítima, um pouco para su-sudeste da baia dos Tigres, e mais para dentro, próximo da Espinheira, etc., que mais do que monumentos funerários e de nenhuma forma cromeleques, nos pareceram, pura e simplesmente habitações. São pequenas casas, de facto circulares, construídas com lajes enterradas, por uma extremidade, no chão e inclinadas para o interior, tomando o conjunto a forma de um tronco de pirâmide, muito tosco. Sobre as juntas, uma outra laje se sobrepõe para impedir ou diminuir a entrada dos ventos.


A observação destas construções levou-nos a proceder imediatamente ao inquérito etnográfico nos povos da orla do deserto, com vista a encontrar quaisquer recordações da gente que as construíra. Próximo do Iona encontrámos uns indivíduos do grupo Ovatchimba (Himbas) que nos deram as seguintes informações:

Antigamente, antes da invasão dos Himbas, habitava a região um povo de nome Ovakwambundo que, em lutas com eles, Himbas, foi desaparecendo. Era dono da terra e usava construir casas com lajes, como estas que ainda se podem ver e que lhe pertenceram. Ainda hoje existem, no rio Coroca, alguns sobreviventes dessa gente, mas poucos, a viverem com outros povos.

E um dos informadores acrescentou, com um sorriso, misto de compaixão e de desprezo:

Era gente muito atrasada, nem era gente, que durante muito tempo não conhecera o uso do fogo, nem das panelas. Comiam a carne e o peixe crus. O peixe, abriam-no e expunham-no ao sol, sobre um penedo, e ficava pronto a ser comido. Quando se encontraram com os Kwepes, foram estesque lhe ensinaram o uso do fogo e das panelas para cozer os alimentos. Ovakwambundo e Ovakwepe eram amigos mas não se cruzavam.

Um outro Mutchimba fez-nos esta observação que atesta a proximidade que os dois grupos viveram:

O povo Ovakwambundo vivia de principio na Mulola do Humbe, próximo do Cambeno, mas costumava roubar os nossos gados e nós tivemos que o combater.

Já ao serviço do Instituto de Investigação Cientifica de Angola, prosseguimos o nosso inquérito arqueológico, tendo-nos sido possível registar 182 casas, algumas das quais só em vestígios precários, assim distribuídas: no Morro Vermelho, por entre as dunas, quarenta. Nestas distingue-se um pequeno agregado circular de 22,70 m de diâmetro, constituído por onze casas, das quais duas gémeas e uma fora do circulo, mas muito próxima dele. Estas do agregado circular são das mais pequenas que vimos, pois têm de diâmetro interior somente 1,80 m. As outras regulam pelos dois metros.

Nas proximidades do Morro do Leão, quarenta e três, e um pequeno abrigo debaixo de um rochedo, delimitado por uma fila de lajes, colocadas na projecção vertical dos limites do mesmo rochedo.

Junto do Morro Encarnado, cinquenta. Na damba que corre entre este morro e a pista da Espinheira, vinte e cinco. Nesta mesma damba tive, igualmente, ocasião de observar diversas cavidades por baixo dos rochedos, com vestígios de terem sido abrigos. Numa pequena elevação junto do Morro do leão, catorze. São estas as de maior diâmetro – 2,20 m. Junto de outro morro que fica para o sul do Morro do leão, e cujo nome não consegui averiguar – é provável mesmo que o não tenha -, sete. Na bamba do Tocolombuende, três. E quantas a areia não terá sepultadas?


 






Igualmente, prosseguimos o nosso inquérito etnográfico junto dos povos que marginam esta região desértica, pelo norte os que vivem ao longo do rio Coroca, e por leste os que vivem nas imediações do meridiano 12º 35’, no Cambeno, Iona, Pediva, etc… Por toda a parte, sempre a mesma informação, com ligeiras, e sem interesse, cambiantes: Era uma gente que vivia lá para a beira do mar, na região do nevoeiro, que não sabia fazer nem usar o fogo, que não tinha panelas e comia a carne e o peixe crus. Foram os Kwepes que lhes ensinaram o uso do fogo e das panelas na preparação dos alimentos.

                No Iona, o tchimba Twetima deu-nos a seguinte informação:

                Os Kwambundos, primeiro viviam ao pé da praia, depois é que vieram para próximo do Cambeno, mulola do Humbe, e quando da invasão dos Cambari Cangolo – Hotentotes – é que voltaram para a beira do mar, e daí tomaram o caminho do Norte. Os Tchimbas, continua a informação, vieram para o Cambeno perseguidos pelos Cambari Cangolo, e nessa altura é que encontraram os Kwambundos, que viviam nas imediações, comendo tudo cru, porque não tinham fogo. Foram eles Ovatchimba, que os ensinaram a fazer e usar o fogo e também a comer a farinha das sementes de gramíneas que as formigas ceifeiras armazenam nos seus celeiros.

                Há nesta informação uma discrepância em relação às outras, quanto aos agentes do ensinamento da utilização do fogo. Julgo, porém, que ele não tem importância e que nem sequer há contradição, pois nada mais natural que, em cada extremo do habitat dos Kwambundos, o agente de aculturação tenha sido o povo com o qual ai contactatram. No limite sudeste foi o grupo Ovatchimba, no limite noroeste foi o grupo Ovakwepe.

                Quanto à língua, nada conseguimos saber, senão nos indivíduos do grupo Ovahimba, de expressão bantu, que nos disseram que eles falavam de uma forma que os demais não entendiam.

                No vale do Coroca, próximo de São João do Sul, encontramos um kwepe que nos fez a revelação, aliás confirmada por todos os demais que interrogámos: Os Kwepes eram família dos Kwandos. O povo Ovakwepe veio daquele lado – apontou o norte com a mão – e o povo Ovakwambundo veio de baixo – apontou o sul; vieram, primeiro dos lados do Iona para a beira mar; depois foram subindo até que se encontraram com os Kwepes. Estes perguntaram-lhes de que se alimentavam; eles mostraram-lhes peixe que apanhavam quando a maré descia, que abriam com uma faca de pedra, punham sobre um rochedo ao sol e comiam de seguida. Os Kwepes pediram-lhes um para provarem, mas assaram-no no fogo. Os Kwambundos pediram para os deixarem provar o peixe assado, e gostaram. Depois pediram aos Kwepes os pauzinhos de fazer o fogo. Os Kwepes ensinaram-nos a menejá-los. Dai em diante todos os kwambundos passaram a trazer consigo os pauzinhos. E os Kwepes começaram a usar o peixe na sua alimentação.

                Um velho quimbar de nome Rogério, que era rapaz quando da visita do Principe D. Luiz Filipe a Angola, trabalhando já nessa altura nas fazendas de São João do Sul, no vale do Coroca, próximo da Onguaia, disse-me que conhecera os Kwambundos vivendo junto dos Kwepes, na margem esquerda do rio Coroca, no local denominado Mucote ou Púlpito do Sul; que era gente muito atrasada, que sempre ouvira dizer que antes de contactarem os kwepes comiam a carne e o peixe crus e não sabiam fazer nem utilizar o fogo. Pedi-lhe que me levasse ao Púlpito do Sul, ao que logo se prontificou. Fica numa pequena elevação da margem esquerda do rio, recoberta de pequenas dunas contra os ventos do sudoeste. E, segundo ele me informou, eram as dunas que lhes serviam de abrigo por um lado, limitando-se, do outro, a tapar com os ramos de arbustos. Nessa época havia muito peixe – continua a informação – o mar deixava-o na areia, mas os Kwambundos costumavam atirar um anzol com um peixe muito pequeno a servir de isca. Por essa altura que o Rogério os conhecera, princípios do século XX, os homens ocupavam-se da pesca e as mulheres faziam pequenas culturas de feijão, abóbora, etc.

                Quando os brancos se estabeleceram em Porto Alexandre, esclarece ainda o Rogério, os Kwambundos foram os primeirosa servir nas pescarias e mudaram do Púlpito do Sul para a baia. Depois cruzaram-se com outras gentes que os brancos trouxeram para o trabalho, e hoje quase já não há Kwambundos. Os poucos, que se sabe que deles descendem, já não se lembram de nada. O grupo aculturou-se e extinguiu-se.

                … Desta forma, apoiados numa tradição que os documentos escritos confirmam, e na pesquisa arqueológica, temos já elementos suficientes para poder dizer que na segunda metade do século XVII, havia em Angola um povo conhecido por “Ovakwambundo”, em tão atrasado estado cultural, que comia a carne e o peixe crus, assim como todos os alimentos de que usava, semente de gramíneas, casca de certas árvores, raízes, etc., muito provavelmente por desconhecimento do processo de produção do fogo e da falta de combustível para ele; que até a carne de carnívoros aproveitava; que este povo vivia na faixa marítima do deserto do Namibe, nas imediações do paralelo 17º, onde deixou vestígios das suas habitações em pequenas construções circulares com lajes, que ainda hoje podemos observar; que também utilizavam, quando o mar lhos oferecia, e noutros locais mais pobres de materiais de construção, os ossos de baleia para estrutura dos seus abrigos, que, impelidos para o Norte, certamente por pressão de outros povos invasores, vindos de Leste, se fixaram nas proximidades da baia de Porto Alexandre onde nem habitações construíram, limitando-se a utilizar as cavidades que as dunas formam na parte oposta ao lado de onde sopram os ventos; e que, finalmente, aqui, nestas novas paragens, o grupo se extinguiu como unidade étnica, quando a indústria da pesca se estabeleceu e as suas aptidões de gente de longa vivência do mar, puderam ser aproveitadas.”

Perante estas evidências, cheguei à seguinte conclusão:

O povo Ovakwambundo foi um povo pré-banto que habitava a região compreendida entre o vale do Curoca e o Rio Cunene, desde há muitos séculos, provavelmente empurrados pela invasão dos Bantus, e que existiu até final do séc. XIX, princípios do séc. XX.

Acredito que os pretos, que refere Duarte Pacheco Pereira, aquando a viagem de Diogo Cão em 1484 à Manga das Areias (Baia dos Tigres), já eram elementos deste grupo étnico, pois o tipo de habitações que descreve coincidem com as encontradas por Willian Messum e Alexandre Magno de Castilho e as estudadas pelo Dr. Alberto Machado da Cruz.

Também o gentio que José da Rosa levou para Luanda, quando em 1665 andou pelo paralelo 18 não deixa dúvidas que eram de povo pré-banto pelo tipo de linguagem que utilizavam e também o facto de comerem tudo cru evidencia que não utilizavam o fogo, característico desta etnia.

Já João Pilarte da Silva na sua viagem do Jau ao Cabo Negro, efectuada em 1770, dá-nos conta de que aquele povo falava por estalos, o que provavelmente estariam na presença de elementos desta gente. Um pormenor interessante, foi o facto que as duas negras daquele gentio que levavam consigo terem falecido de bexigas. Sabemos que as bexigas era o nome pelo qual era conhecida na altura a varíola, facto que também J. Pereira do Nascimento refere no seu livro Exploração Geográphica e Mineralogica no Districto de Mossamedes em 1894-1895, como tendo sido uma das causas da extinção dos Ovakwambundos. Acontece que, certos povos, que viveram muitos anos isolados se tornam muito vulneráveis a vírus provenientes de outros continentes, como aconteceu nas civilizações da América do Sul, e a varíola, era nessa altura muito comum entre os europeus e gente que com eles contactava. Creio, embora o Dr. Alberto Machado da Cruz não o refira, que esta também terá sido uma das causas da sua extinção, a par das por ele apresentadas.

Em todas as narrativas há imensas coincidências que me deixam convicto de que estamos na presença de uma única e só etnia, que por pressão de outras civilizações desapareceu, restando talvez algum do seu sangue correndo nas veias de alguns Quimbares de Onguaia e Tômbwa.

19 de Agosto de 2014.